sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Voltar atrás para quê?

Ela desatou o pacote de papéis, muito atado, metido numa pasta de cartão, e recomeçou a lê-lo. Já o conhecia. Tinha-o escrito e lido, mas deixara-o adormecer, esquecer quase. Não era uma escritora, não mirava à publicidade. Estava ali um pequeno coração morto, que já não era o seu. Para ela própria se acanhava de o ressuscitar. Tão inútil é viver, reviver um passado longínquo, de raízes secas... Mas por teima e porque andava desasada com a mudança de terra (voltara à cidade, sentia calor, moleza, estranheza), por teima, pura teima, se pôs a relê-lo.
Dois anos, dois anos apenas, ela assim passou, seguidos mas incompletos. Tão longos, tão cheios e tão vazios! Lembrados como nenhuns outros da sua vida.
Lembradas também, ou dentro deles, as rosas-chá e as flores de beladona, os bons-dias e as boas-noites, a Lúcia-lima, a baunilha e as papoilas da índia… que cresciam sem trato num pequeno jardim traseiro da casa e no seu espírito juvenil, sem recheio quase nem obrigações, as suas mais finas particularidades. Para ela, as flores tinham romances, uma vida íntima além de toda a variedade e graça, patentes essas; eram especiais seres idílicos; as flores e também os pássaros, as estrelas… Um dos seus gostos, quando ninguém a via, consistia em se deitar no chão, de olhos para o céu, como se o estivesse bebendo.

Irene Lisboa 

Sem comentários:

Enviar um comentário